Eu conheci
um peregrino. Não é todo mundo que tem a chance de viver um encontro destes.
Por isso digo com certa dose de orgulho: eu conheci um peregrino.
Não esbarrei nele por
acaso. Uma neblina pesada atrapalhava a sua caminhada e ele estava confuso...
Ele chegou cansado, eu diria até que chegou exausto. E me ensinou muito sobre a
vida e o ato de peregrinar. Ele me ensinou a importância da estratégia em
vários aspectos da vida. Me ensinou a olhar a beleza que existe em paisagens,
em construções, nas pessoas, nos detalhes que escapam a um olhar desatento. Ele
me ensinou que é possível desmontar o medo com frases e atitudes coerentes:
certa vez, na praia, o medo veio lhe fazer companhia e lhe falar de coisas que
ficaram para trás no tempo ou que eram fruto da imaginação (medos costumam ser
muito criativos, apesar de pouco originais!). Pois o peregrino tentou desviar a
atenção para a paisagem e a beleza que o rodeava naquele momento. Mas o medo
não desistiu e o ameaçou de morte (ah! Trágica e mesquinha estratégia do
medo...). Neste momento, o peregrino olhou o medo nos olhos e lhe disse com
muita convicção: “pois veja que vou morrer admirando uma bela vista!”. Desarmou
o medo. Destruiu a chantagem do medo. Soube resgatar a sua vida das mãos do medo:
“me devolve a minha vida porque você não sabe cuidar dela! Eu sei fazer muito
melhor!”.
Mas, como eu dizia
antes, quando o conheci, ele estava exausto. Sua caminhada tinha sido longa,
por todos os continentes do planeta e quase todos os países que a humanidade
conseguiu criar construindo fronteiras invisíveis (e, em alguns casos, bem
visíveis!). Sua caminhada havia sido longa e desafiadora! E começou
cedo, muito cedo... Eu poderia até dizer que seu primeiro choro, ainda na
maternidade, foi o nascer do peregrino; que seus primeiros passos foram
estimulados pela certeza de que caminhar era preciso; e que sua busca pela
beleza nasceu da falta dela no olhar de quem olhava (ou deveria olhar) por ele.
Pressionado desde sempre, o peregrino forjou sua alma e construiu sua fortaleza
interior. Descobriu virtudes que lhe servem de bússola – honestidade, amizade,
estratégia, determinação, meta, beleza, persistência, entre tantas outras – e
virtudes que luta para que sejam mais do que belas palavras – respeito, cuidado,
carinho, família, afeto...
Uma força interior
o impulsiona a seguir, como se lhe dissesse o tempo todo: “Vá em frente! Vá,
enfrente!”. E assim ele fez: seguiu em frente, enfrentando desafios os mais
diversos e descansando em lugares os mais variados. Peregrino que é, andou
muito em busca de respostas... Andou, andou, andou e chegou naquele ponto da
jornada que os peregrinos conhecem bem: o momento de ouvir o seu coração. Não
mais ser guiado pela lógica ou pelo impulso de seguir em frente, mas poder
ouvir seu coração.
Foi neste momento
que conheci o peregrino. Seu coração falava alto, gritava, chorava, queria ser
ouvido. Contava histórias de passados distantes e sonhos de futuros incertos.
Mostrava suas feridas – e como elas doíam! E apontava com desconfiança para o
medo – esse infeliz parasita que insistia em caminhar ao lado do peregrino e
atrasar a sua jornada.
Seria o peregrino capaz
de lidar com tantas coisas ao mesmo tempo? Nem ele mesmo sabia. Mas, aquele que
nasce peregrino, tem espírito livre e a alma cheia de horizontes. Logo ele se
recuperou, ouviu seu coração, cicatrizou as feridas, retomou sua força,
protegeu seu coração, deixou de lado as histórias que pesavam e levou somente
aquelas que são essenciais – as que são leves e simples. Respirou fundo,
planejou sua jornada, levantou-se. Já não estava frágil, nem exausto. Estava
renovado, renascido. Era ainda um peregrino, mas em novo estágio de vida: um
peregrino que sabe ouvir seu coração. Um peregrino que equilibra ação e emoção.
Podia seguir viagem.
E, quando a neblina
passou, o caminho voltou a se abrir à sua frente. Despediu-se daqueles que ele
ama. Despiu-se daquilo que não mais lhe serve. Envolveu-se de leveza e
projetos. E seguiu o seu caminho.
Quando voltarei a vê-lo?
Só o tempo sabe... Por hora, sinto-me grata à vida por ter-me dado a chance de
conhecer um peregrino – e aprender com ele. E, envolvida em gratidão, vou
tecendo a esperança de que ele continue construindo sua história como sempre
fez: com ética e estética.
Este texto é uma homenagem a um amigo peregrino - Flávio Correa. E, também, uma homenagem aos meus tantos amigos peregrinos que têm o espírito livre e a alma cheia de horizontes Eles e elas andam pelo mundo porque sabem que a vida é uma jornada e que os encontros são sempre um presente. Bom caminho, peregrinos!