segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Eu conheci um peregrino

       Eu conheci um peregrino. Não é todo mundo que tem a chance de viver um encontro destes. Por isso digo com certa dose de orgulho: eu conheci um peregrino.

    Não esbarrei nele por acaso. Uma neblina pesada atrapalhava a sua caminhada e ele estava confuso... Ele chegou cansado, eu diria até que chegou exausto. E me ensinou muito sobre a vida e o ato de peregrinar. Ele me ensinou a importância da estratégia em vários aspectos da vida. Me ensinou a olhar a beleza que existe em paisagens, em construções, nas pessoas, nos detalhes que escapam a um olhar desatento. Ele me ensinou que é possível desmontar o medo com frases e atitudes coerentes: certa vez, na praia, o medo veio lhe fazer companhia e lhe falar de coisas que ficaram para trás no tempo ou que eram fruto da imaginação (medos costumam ser muito criativos, apesar de pouco originais!). Pois o peregrino tentou desviar a atenção para a paisagem e a beleza que o rodeava naquele momento. Mas o medo não desistiu e o ameaçou de morte (ah! Trágica e mesquinha estratégia do medo...). Neste momento, o peregrino olhou o medo nos olhos e lhe disse com muita convicção: “pois veja que vou morrer admirando uma bela vista!”. Desarmou o medo. Destruiu a chantagem do medo. Soube resgatar a sua vida das mãos do medo: “me devolve a minha vida porque você não sabe cuidar dela! Eu sei fazer muito melhor!”.
     Mas, como eu dizia antes, quando o conheci, ele estava exausto. Sua caminhada tinha sido longa, por todos os continentes do planeta e quase todos os países que a humanidade conseguiu criar construindo fronteiras invisíveis (e, em alguns casos, bem visíveis!). Sua caminhada havia sido longa e desafiadora!  E começou cedo, muito cedo... Eu poderia até dizer que seu primeiro choro, ainda na maternidade, foi o nascer do peregrino; que seus primeiros passos  foram estimulados pela certeza de que caminhar era preciso; e que sua busca pela beleza nasceu da falta dela no olhar de quem olhava (ou deveria olhar) por ele. Pressionado desde sempre, o peregrino forjou sua alma e construiu sua fortaleza interior. Descobriu virtudes que lhe servem de bússola – honestidade, amizade, estratégia, determinação, meta, beleza, persistência, entre tantas outras – e virtudes que luta para que sejam mais do que belas palavras – respeito, cuidado, carinho, família, afeto...
     Uma força interior o impulsiona a seguir, como se lhe dissesse o tempo todo: “Vá em frente! Vá, enfrente!”. E assim ele fez: seguiu em frente, enfrentando desafios os mais diversos e descansando em lugares os mais variados. Peregrino que é, andou muito em busca de respostas... Andou, andou, andou e chegou naquele ponto da jornada que os peregrinos conhecem bem: o momento de ouvir o seu coração. Não mais ser guiado pela lógica ou pelo impulso de seguir em frente, mas poder ouvir seu coração.
     Foi neste momento que conheci o peregrino. Seu coração falava alto, gritava, chorava, queria ser ouvido. Contava histórias de passados distantes e sonhos de futuros incertos. Mostrava suas feridas – e como elas doíam! E apontava com desconfiança para o medo – esse infeliz parasita que insistia em caminhar ao lado do peregrino e atrasar a sua jornada.
    Seria o peregrino capaz de lidar com tantas coisas ao mesmo tempo? Nem ele mesmo sabia. Mas, aquele que nasce peregrino, tem espírito livre e a alma cheia de horizontes. Logo ele se recuperou, ouviu seu coração, cicatrizou as feridas, retomou sua força, protegeu seu coração, deixou de lado as histórias que pesavam e levou somente aquelas que são essenciais – as que são leves e simples. Respirou fundo, planejou sua jornada, levantou-se. Já não estava frágil, nem exausto. Estava renovado, renascido. Era ainda um peregrino, mas em novo estágio de vida: um peregrino que sabe ouvir seu coração. Um peregrino que equilibra ação e emoção. Podia seguir viagem.
     E, quando a neblina passou, o caminho voltou a se abrir à sua frente. Despediu-se daqueles que ele ama. Despiu-se daquilo que não mais lhe serve. Envolveu-se de leveza e projetos. E seguiu o seu caminho.

    Quando voltarei a vê-lo? Só o tempo sabe... Por hora, sinto-me grata à vida por ter-me dado a chance de conhecer um peregrino – e aprender com ele. E, envolvida em gratidão, vou tecendo a esperança de que ele continue construindo sua história como sempre fez: com ética e estética.

Este texto é uma homenagem a um amigo peregrino - Flávio Correa. E, também, uma homenagem aos meus tantos amigos peregrinos que têm o espírito livre e a alma cheia de horizontes Eles e elas andam pelo mundo porque sabem que a vida é uma jornada e que os encontros são sempre um presente. Bom caminho, peregrinos!


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